‘Desde que sou gente nunca vi a chuva atrasar dois meses’: seca no oeste baiano afeta comunidades de fechos de pasto

21 de dezembro de 2023
Mudanças climáticas e desmatamento agravam fenômeno El Niño (Foto: Thomas Bauer/Acervo ISPN)

Mudanças climáticas agravam impactos do fenômeno El Niño, dizem especialistas; na região de Correntina, situação tem gerado sobrecarga no uso do rio Arrojado 

A seca prolongada no oeste da Bahia tem afetado o modo de vida de comunidades tradicionais de fechos de pasto, localizadas em sua maioria no bioma Cerrado. “Desde que sou gente, nunca vi chegar outubro sem chover”, lamenta Eldo Barreto, 41 anos, da  Eldo Barreto, morador da comunidade Praia, no município de Correntina.

Outubro e novembro costumam ser os meses que dão início à estação chuvosa no bioma, enquanto a seca cerratense se concentra nos períodos de maio a setembro. De acordo com Eldo, a chuva em sua região começa a chegar lá para o dia 15 ou 20 de outubro, molhando as lavouras, o pasto, garantindo comida para o gado e para o povo.

Este ano, no entanto, o cenário é diferente: chegou outubro mas a chuva não veio. De acordo com Isabel Figueiredo, coordenadora do Programa Cerrado e Caatinga, do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), um dos fatores que tem causado a seca atípica na região é o El Niño, fenômeno que interfere na condição climática do planeta.

Esse fenômeno climático é agravado pelas mudanças do clima que, como lembra Isabel, “estão em curso acelerado”, e pelo desmatamento no oeste baiano.

“Na região do oeste da Bahia, tudo isso é agravado pelo desmatamento generalizado da imensa região que seria responsável pela recarga dos aquíferos, próximo à divisa com o estado de Goiás. A substituição do Cerrado por monocultivos da década de 1980 para cá alterou profundamente todo o regime hídrico da região”, destaca Isabel.

Nas últimas três décadas, o Cerrado se tornou mais seco. É o que conclui um artigo publicado na revista Scientific Reports. A redução das chuvas é mais acentuada na porção centro-norte do bioma, e nos seis meses que, historicamente, são os de maior seca e respondem por apenas um terço da chuva anual do bioma: entre junho e setembro, na estação seca, e entre outubro e novembro, no início da temporada úmida.

Nestes meses, entre junho e novembro, o volume da precipitação média acumulada e o número de dias com chuva foram cerca de 50% menores entre 1991 e 2021, em relação aos 30 anos anteriores, entre 1960 e 1990.

Este cenário explica a seca prolongada, que impacta sobretudo as comunidades tradicionais. “Minha geração nunca viu isso acontecer e não se programou para isso”, declara Eldo, acrescentando que é um problema que desencadeia vários outros.

Sem prever a falta de chuva, o estoque de comida para o gado vai acabando. Sem chuva, o capim não cresce. Também sem chuva, a lavoura não vinga e é preciso consumir mais a água do rio. “Com as mudanças do clima, complica, porque o agricultor perdeu o tempo das coisas. Atrapalha, porque a gente que é da roça depende da previsão se vai ou não chover”, lamenta Antônio Barbosa Magalhães, 52 anos, vizinho de Eldo e membro da associação Fecho Entre Morros, Morrinho e Gado Bravo.

As comunidades de fechos de pasto são comunidades camponesas tradicionais, que agregam em seu modo secular de produção e de vida o uso de terras comunais, cole-

tivas, chamados de “fecho” ou “gerais”, para criação de gado bovino e extrativismo de plantas medicinais e alimentícias.

A esperança dessas comunidades é o que eles chamam de “área de solta”. É uma área com vegetação nativa de Cerrado conservada e protegida pelas comunidades há gerações, onde o gado, principal fonte de renda das comunidades de fecho de pasto, pode se alimentar de capins nativos.

Funciona assim: o gado é solto no início das chuvas de outubro. Os animais se alimentam do cerrado enquanto o capim exótico plantado cresce nas roças. O gado é trazido de volta perto do feriado do Natal. Daí, ele se alimenta até fevereiro ou março, quando ocorre uma segunda solta para que o pasto possa se recuperar. O gado volta para as áreas cultivadas em maio, quando já há comida suficiente produzida para enfrentar a seca.

Outro fator relatado pelos fecheiros, que moram às margens do rio, no Vale do Arrojado, é a diminuição das águas do rio porque as grandes fazendas de monocultivos furam poços e puxam água do subsolo para a irrigação em sistemas com pivôs centrais. “A água vai ficando pouca porque eles puxam água. Fica bom pra eles, mas não para nós que dependemos do rio”, destaca Antônio Barbosa.

Mapa do Vale do Rio Arrojado. Acervo ISPN

Isabel Figueiredo do ISPN afirma que a “mudança climática está inclusive afetando a produtividade das grandes lavouras, o que tem feito aumentar ainda mais a demanda por áreas de lavoura irrigada, seja por água superficial ou subterrânea, pressionando ainda mais os corpos d’água”.

As comunidades no Vale do Arrojado dependem da água para plantar arroz, feijão, mandioca, milho, gergelim, banana, hortaliças, cana e capim de ração. “A gente assiste o rio secar dia após dia, e isso preocupa porque o rio alimenta a vida da população”, acrescenta Eldo.

Adaptação

Se antes os moradores da região sabiam com mais precisão quando chovia e quando ficava seco, agora cada vez mais eles vivenciam uma maior imprevisibilidade climática e a intensificação de fenômenos como El Niño.

Para lidar com esse cenário, o pesquisador do Instituto Cerrados, Yuri Salmona, destaca a necessidade de se pensar em “adaptabilidade climática”, com ações que podem remediar e mitigar efeitos das mudanças do clima.

Nesse sentido, diz ele, garantir grandes porções de vegetação nativa é importante.

“A vegetação nativa é importante para o ciclo hidrológico, já que traz uma regularidade no ciclo de evapotranspiração da água — joga-se umidade na atmosfera de uma maneira que o planeta já estava acostumado, diminuindo o fator imprevisibilidade”, explica o pesquisador.

Salmona destaca ainda que a vegetação nativa colabora para infiltrar água no subsolo, deixando-a disponível para o período da seca. “A gente precisa garantir que o Cerrado fique de pé”, resume.

Mas o desmatamento na região oeste baiana segue acelerado, apesar do cenário que preocupa. Para fazer frente a isso, 12 iniciativas comunitárias e a Associação Fecho de Clemente foram selecionadas em edital PPP-ECOS para fortalecer o protagonismo das organizações locais, capacitar a juventude e gerar gestão de conhecimento. Saiba mais aqui.

Texto: Camila Araujo/Assessoria de Comunicação do ISPN

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